terça-feira, 8 de março de 2011

Relativizar a escala cartográfica

Cartografia didática no Brasil, presente em livros de Geografia escolar, em Atlas geográficos e em propostas oficiais de órgãos públicos, é avaliada sem o ser de fato. Os critérios consagrados - compõem uma lista de exigências - e conseguem a proeza de fugir de tudo o que é essencial. Caracterizam-se pela subutilização do mapa, pelos destaques secundários, pela imprecisão e pelo desconhecimento.
Um exemplo da irrelevância: é costume que editores, avaliadores oficiais e mesmo autores receitem: todo o mapa tem que ter o Norte indicado. Esse aspecto foi rapidamente tratado no artigo Quando não é adequado indicar o Norte no mapa (postado nesse blog no dia 26 de Outubro de 2008). Ora, por convenção praticamente todas as projeções estão orientadas para o Norte, então por que indicar o que já está dado e visível? Ou alguém tem dúvida que a Bahia está ao norte de São Paulo, ou que os EUA estão ao norte do México?
O exagero em reiterar o que está dado vai a ponto de se cometer erros graves ao se indicar o norte no rodapé de mapas de modo a contrariar a orientação dos meridianos dada pela projeção.

Neste momento, queremos tratar de outro exemplo de exigência que se repete impensadamente e que, igualmente à questão do Norte, acarreta uma série de problemas, se não se cuidar para evitar entendimentos e procedimentos indevidos e certos excessos de interpretação. Trata-se da assertiva: todo mapa sempre tem que trazer a escala cartográfica.
Em Cartografia, a escala representa uma relação de redução entre o referente (terreno) e o referido (mapa). Algo expresso com essa simplicidade é do mesmo modo expresso com clareza em termos numéricos. Por exemplo: 1:100.000, quer dizer: 1 cm no mapa representa 100.000 cm no terreno, ou 1 km. Discussão encerrada? Engano, pois isso é um ponto de partida para várias relativizações.
Segundo Jacques Lévy, a Cartografia matemática durante muito tempo não quis expor à luz do dia o caráter arbitrário das escolhas em matéria de escala, resultado de opções tomadas entre uma série de possibilidades e necessidades internas da matemática e da geometria e não de uma verdade geográfica (espacial) que estaria sendo “revelada” pelo mapa (2003, p. 284).
É na realização de mapas-múndi e na reflexão sobre as projeções que a acompanha que podemos verificar a falsa obviedade que envolve a escala cartográfica. A projeção de uma superfície curva sobre um plano (o mapa) obriga a escolhas: não se podem respeitar ao mesmo tempo os ângulos, os comprimentos e as superfícies. A projeção de Mercator (que respeita os ângulos) durante muito tempo dominou a produção dos mapas-múndi e nela, notem bem, a escala é variável. É maior nas altas latitudes e mais baixa nas baixas latitudes, fabricando assim uma Groenlândia maior que a Austrália (ou que a América do Sul). E sobre o terreno real a Austrália possui uma extensão quase quatro vezes maior que a Groenlândia.
Isso retira da escala sua universalidade no mapa. Vamos ver um exemplo interessante do que acontece com a escala cartográfica num mapa-múndi. O exemplo foi tirado do excelente site www.progonos.com/furuti produzido pelo analista de sistemas Carlos A. Furuti que tem na análise de projeções cartográficas (e na produção de softwares) uma de suas especialidades. Observem o mapa-múndi que segue:


Fonte: http://www.progonos.com/furuti/MapProj/Dither/CartProp/DistPres/distPres.html

Nessa projeção (cilíndrica equidistante-equatorial), todas as linhas verdes têm o mesmo comprimento, porém no terreno as distâncias em km, efetivamente as medidas ao longo das linhas vermelhas (geodésicas, que representam a curvatura da localidade), variam enormemente. Quatro escalas gráficas são oferecidas nesse mapa para verificar esta questão para esta projeção. Cada escala horizontal só é útil ao longo de seu paralelo específico ou no paralelo oposto simétrico em relação ao Equador; a escala vertical é válida em qualquer lugar.
A escala cartográfica é uma questão da matemática geométrica, e como foi dito anteriormente, não tem uma relação direta e exata em relação ao terreno. Um mapa-múndi feito com a projeção cilíndrica eqüidistante–equatorial terá um fator de redução geral que pode ser representado por uma escala cartográfica numérica.
Mas, isso não significa que ela possa ser usada para estabelecer as medidas do terreno, como normalmente se pensa e se procede. As deformações que a própria projeção impõe já significam um afastamento das medidas do terreno. Se for expresso em escala gráfica como no exemplo, o que ficará evidente é que escala não corresponde à mesma relação por toda a extensão do mapa.
Muitos Atlas (seus autores) que tratam a espacialidade dos fenômenos numa escala de redução de mapa-múndi consideram que é enganoso apresentar uma escala para o mapa, mesmo que esta tenha o cuidado de fazer a ressalva que aquela escala é valida somente “no Equador”.
Um bom exemplo de Atlas que abdicaram de tal referência escalar (seja na forma numérica ou gráfica) é o Atlas de la Mondialisation (http://cartographie.sciences-po.fr/). Isso não quer dizer que o mapa não tenha escala - que não foi o seu grau de redução que definiu uma escala de representação na forma de mapa-múndi- mas, sim que ao colocar uma escala gráfica ao lado do mapa, será irresistível ao usuário do mapa querer se referenciar por toda sua extensão com base na validade de que 1 centímetro são tantos quilômetros lineares que separam dois pontos na superfície terrestre.
Mark Monmonier acha que os cartógrafos, sabiamente, evitam colocar escala nos mapa-múndi que poderiam favorecer este tipo de má utilização. Algo, que não ocorre no Brasil, como as avaliações oficiais demonstram. Assim, boa parte da cartografia estrangeira de boa qualidade seria reprovada no Brasil.

(1) Professor de Cartografia do Unifieo de Osasco e mestrando em cartografia na USP, com o professor Hervé Théry.
(2) Doutora e Professora de Cartografia do Departamento de Geografia da USP.


Fonte: http://jaimeoliva.blogspot.com

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